O CASO DO BARBUDO PERSEGUIDO

Naquela tarde, como não tinha nenhum caso urgente entre mãos, o grande Inspector Patilhas estava entretido a colar, num caderno de papel almaço, a sua numerosa colecção de avisos para o pagamento de letras. À sua frente, na luxuosa secretária de macacaúba, estendiam-se centenas de papelinhos de várias cores, que ele ia classificando metodicamente.
Entretanto, o Ventoinha estava entretido a resolver um problema de palavras cruzadas.
—7 horizontal... Mamífero da família dos equídeos, com quatro patas e cinco letras... Que diacho será?... Ó Chefe! Chefezinho!—exclamou ele. — Sabe-me dizer qual é o mamífero da família dos equídeos que tem quatro letras e cinco patas?
O Inspector Patilhas, absorvido pela sua interessante tarefa, levantou a cabeça, e arregalou os olhos inteligentes.
—Quatro letras e cinco patas?!
— Ai, desculpe, Chefe, que me enganei! É ao contrário! Quatro patas e cinco letras! Assim é que é!
—Burro! — exclamou o grande Inspector Patilhas, regressando ao seu trabalho.
—ó Chefe, isso não está certo l—- disse o Ventoinha, muito formalizado.
—Se não está certo, é porque o passatempo está mal feito. Não são palavras cruzadas,
mas sim palavras escusadas.
—Não é isso! O passatempo está
certo — o que não está certo é o Chefe estar a ofender-me dessa maneira! Vá lá chamar burro ao guarda-noctumo da sua área, olha que coisa!
O Ventoinha estava realmente irritado.
—Mas, ouve lá, quem é que te chamou burro?—perguntou o Chefe Patilhas. Eu
apenas te dei a solução para o teu problema de palavras cruzadas! Um mamífero da
família dos equídeos, com quatro patas e cinco letras, é um burro! Percebes agora?
—Ah!!! Agora percebo — disse o Ventoinha, muito satisfeito. Então o Chefe não
me estava a chamar burro, a mim, pois não?
—Não!—disse o Inspector Patilhas. É preciso seres muito burro para pensares uma coisa dessas!...
Nesse momento, o telefone tocou.
Patilhas estendeu a mão, pegou no auscultador, pôs a cabecinha de lado,e disse:
Hélio!-—tal como via fazer às vezes ao senhor Perry Mason, na televisão.
Do outro lado do fio, ouvia-se uma voz de homem, que gritava:
—É o Inspector Patilhas? Depressa, venha salvar-me! Querem matar-me! Estou a ser atacado a todo o momento!
É uma perseguição diabólica! Se não vem depressa, estou tramado!
—Sim, vou imediatamente!—exclamou Patilhas, com a sua habitual vivacidade. Quem fala, e onde mora?
— O meu nome é Venâncio Trocopasso, e moro na Avenida das Baldracas, n.° 15, à esquerda de quem sobe, e à direita de quem desce. Mas venha depressa! Aí vem um ataque!
Aaaaaai!...
—Está? Está lá?—exclamou Patilhas, embora já devesse saber que, nestas alturas, nunca está ninguém.
—Não se ouve nada, Chefe?—perguntou o Ventoinha?
—Apenas se ouve o silêncio—disse Patilhas.,
—Mas o silêncio não se ouve!— retrucou Ventoinha, cheio de lógica. Querem ver que tenho de pôr o chefe no 7 horizontal?...

Eram 7 horas, 12 minutos e 14 decilitros, T. M. G. (Tempo Médio de Gripes), quando Patilhas e Ventoinha chegaram à Avenida das Baldracas, n.° 15. Tratava-se de um belo palacete—ou, melhor dizendo, um palaovto, ou -pala/nove, visto que era muito grande.
Patilhas e Ventoinha bateram à porta, que lhes foi aberta por um mordomo de colete às riscas.
— Baptista! — disse Patilhas, com ares importantes. Vá anunciar ao seu patrão
que chegaram Patilhas e Ventoinha, os maiores detectives do Mundo, incluindo o
Samouco!
—Mas... como sabe que eu me chamo Baptista?!—exclamou o mordomo, absolutamente patareco.
— Elementar, meu caro! — disse Patilhas. Em primeiro lugar, todos os mordomos se chamam Baptista... e em segundo lugar, lembro-me de o ter prendido, aqui há uns cinco anos, quando andei a investigar o caso do contrabando de pedras para o fígado!
—Por favor, não me denuncie, senhor Inspector—rogou o Baptista, ajoelhando na carpete. Eu estou regenerado! Juro que sou bestialmente honesto, e que continuarei a sê-lo, daqui em diante!
—Mais vale sê-lo que estampilha!
—disse o Ventoinha, que já estava calado há muito tempo.
Daí a momentos, os dois famosos detectives particulares à parte eram introduzidos no salão nobre. Aí, apareceu-lhes pela frente um cavalheiro bem vestido, e usando uma barba à existencialista, que lhe ficava bastante mal, não desfazendo nos outros existencialistas que também usam barba.
—Eu sou Venâncio Trocopasso, o dono da casa — apresentou-se o sujeito.
—Tinha grandes esperanças de o encontrar já cadáver—disse Patilhas. Pelo telefone, dava a impressão de que ia sofrer um ataque mortal!...
—Não! Desta vez, tratava-se,apenas, de um ataque de fígado, que me dá de vez em quando. Porém, eu tenho sido perseguido e atacado a sério várias vezes, senhor Inspector!
Especialmente de noite, quando estou no meu quarto, sozinho... Às vezes, acordo com um peso em cima de mim...
— Um peso? Isso não lhe acontece quando come feijão, por exemplo? Não será um peso no estômago?
— Nada disso! Trata-se de alguém que pretende matar-me! Por várias vezes tenho visto brilhar uma arma!
Estou aterrorizado! Alguém me quer dar cabo do canastro! Por favor, safem-me desta ameaça — implorou o barbudo, ajoelhando aos pés do Inspector Patilhas.
— Calma, meu amigo, calma! — aconselhou o Inspector. Vamos entrar em acção imediatamente. Vamos lá a saber, para já: quantas pessoas habitam nesta casa?
—Além de mim, há o meu sobrinho Alfredo, que é um rapaz muitestróina, cheio de dívidas, porque se mete muito no jogo da pulga; a minha sobrinha Tatá, que quer à viva força casar com um baubau qualquer, mas eu não consinto; e o mordomo, o Baptista, que é uma jóia de rapaz, não desfazendo...
—Três suspeitos, portanto—disse Patilhas, que tinha estado a contar pêlos dedos, para não se enganar.
Ventoinha!
—Diga, Chefe.
—Traz a esta sala todas as pessoas que acabaram de ser mencionadas! Quero proceder ao interrogatório. Entretanto, já tenho a garganta seca, de tanto usar a minha massa cinzenta... Senhor Venâncio Trocopasso, não poderíamos tomar um bagaço com soda, enquanto eu lhe faço umas perguntas, antes de falar com os suspeitos?...

Depois de algumas perguntas inteligentes, Patilhas ficou a sabetudo quanto precisava, para iniciar as investigações. O barbudo era um homem rico, mas muito sovina. Tirarem-lhe dinheiro, era para ele mais doloroso que tirarem-lhe quatro dentes seguidos, sem anestesia!
Por isso, as pessoas lá da casa não gostavam dele nem com molho de píri-piri...
O sobrinho Alfredo pedia-lhe dinheiro para pagar as dívidas do jogoda pulga... e ele não dava; a sobrinha Tatá pedia-lhe o dote a que tinha direito, para poder casar com o baubau que namorava... e ele não dava; e o mordomo Baptista pedia o dinheiro dos ordenados dos últimos seis meses... e ele também não dava.
— Mas não compreendo porque o atacam, a si! — disse Patilhas, raciocinando a todo o vapor, e metendo um dedo no nariz, como sempre lhe sucedia em momentos de grande concentração.—O senhor já me disse que tem o testamento feito, e que deixa a massa toda a uma instituição de protecção aos espectadores da Televisão! Assim, as pessoas cá de casa não ganham nada com a sua morte!
—Bem, é que eu ainda não lhe disse! Eu guardo toda a minha fortuna dentro daquele cofre-forte, ali, na parede—apontou o barbudo...
—E guardo a chave do cofre... aqui!
E, dizendo isto, apontava a barba.

—O quê?! — exclamou Patilhas.
—A chave do cofre está metida aí na barba?
—Exactamente! Foi o melhor sítio que eu arranjei para a esconder!
Mas a pessoa que me tem atacado, com certeza que sabe do meu segredo, e então pretende dar-me cabo do canastro, para me roubar a chave, e depois fugir com o dinheiro.
Patilhas raciocinou durante 13 segundos e um quarto, e depois disse:
— Bem, vamos ver o que dá o interrogatório dos suspeitos!
Nesse momento, entrava Ventoinha, muito excitado.
—Chefe! ó Chefe! Não há suspeitos! Ou por outra, há suspeitos,mas não suspeito onde é que eles se meteram. Por outras palavras, os suspeitos desapareceram!
—O quê?!—tinha dito o Inspector Patilhas.
—Sim, Chefezinho! O sobrinho Alfredo acaba de partir de avião para Monte Carlitos, onde vai tentar a sua sorte ao jogo do percevejo, dado que o jogo da pulga não dá nada. A sobrinha Tatá acaba de partir em viagem de núpcias para Freixo-de-Espingarda-às-Costas, depois de ter casado com o tal baubauque o senhor barbudo... perdão, o senhor Venâncio, detestava. E o mordomo Baptista também fugiu a todo o galope do carro de 40 cavaloa e uma égua que pertencia aqui ao senhor Venâncio... perdão, ao senhor barbudo.
—Bestial!—exclamou o dono da casa, entusiasmado. Assim, fico livrede perigo!
Fosse qual fosse a pessoa que me atacava, já saíram todos desta casa! Ora esperem aqui
um bocado, que eu vou à adega buscar uma água-pé especial que lá tenho, para omemorarmos
o facto!
E o barbudo saiu, enquanto Patilhas e Ventoinha se lambiam todos, a pensar que iam beber
uma boa pinga.
Nisto, porém, ouviram um grito de terror, ao longe. Era a voz do barbudo!
—Socorro! Estou a ser atacado!
Os dois detectives particulares à parte correram a toda a mecha pêlos corredores fora.
Ao fundo de uma sala, viram o senhor Venâncio Trocopasso, que se debatia nos braços de um matulão de bata branca, que empunhava uma navalha, e tentava atingir-lhe a garganta.
Empunhando a sua pistola de cinco canos, o grande Patilhas revelou, naquele momento, toda a sua coragem e decisão, exclamando:
—Alto, vilão! Larga as barbas desse homem, senão enfio-te cinco balas no físico, que nunca mais preenches nenhum boletim do Totóbola!
O homem da bata branca largou a navalha e ergueu as mãos, exclamando em voz rouca:
—Hei-de conseguir o que quero!
Isto não fica assim!
O Ventoinha meteu a sua colherada.
—Ah, pois não! Isto não fica assim! Agora vais para o xelindró, que é uma beleza.
—Silêncio! — exclamou Patilhas, para verem que ele é que era o chefe.—Tu aí!
Explica-te! Porque querias matar este senhor?
—Eu?!—espantou-se o matulãoda barba branca.—Mas eu não o queria matar!
Ficaram todos com cara de artolas.
—Não o querias matar? Então, porque o atacaste tantas vezes ? Sim,
porque agora sabemos que eras tu, e mais ninguém, o autor dos atentados !
— Eu ataquei-o, porque este tipo é um sovina! Antigamente, ia lá à
minha loja, todos os dias! Agora, há mais de seis meses que lá não põeos pés,
e ainda parece que anda a fazer pouco de mim, nessa figura!
—Que figura?—perguntou Patilhas.
—Com aquela porcaria daquela barba! — disse o outro. É que eu
sou barbeiro, e desde que ele deixou crescer barba, foi um cliente que eu
perdi! Eu não o ataquei para lhe roubar nada! Ataquei-o para lhe rapar a barba...

FIM

PARODIANTES DE LISBOA
O CASO DAS SARDAS MESTIRIOSAS
- O CASO DO MORTO ENVERGONHADO















PATILHAS E VENTOINHA
PARODIANTES